sábado, 30 de abril de 2016

UM MEDITERRÂNEO COMO SEPULTURA


                                      

Quem não sabe ler esta arquitectura, simbolicamente, como uma qualquer Babel da Europa, já cheia de gente em gritos contrários uns aos outros -- e por fora, ao alto, deste mesmo lugar em que a fotografámos, ainda não é senão um edifício por acabar, suportes em altura e à espera dos envolvimentos monumentais anunciando o futuro.
E quem não sabe olhar o mundo ao passar, lendo os jornais que misturam o medo com uma actualidade trágica, vagas humanas diversamente acossadas pelo horror de mortes bárbaras, anos e anos um velho território agora em ruínas, devassado pelos daesh radicais, e agora fugindo para o mar Mediterrâneo, centenas de milhares de pessoas, famílias, crianças, todos chantageados por quem lhes aponta as águas na ideia de uma passagem para o outro lado, para a Europa. Barcos de borracha para lotações de vinte pessoas e logo lotados por quarenta, deixando o dinheiro, vestindo falsos salva-vidas, chegando um dia a praias juncadas de cadáveres e doidos em passos de acaso, enquanto a marinha os ajuda a pisar a areia e a livrar-se do frio mortal. Esta história já tem milhões de seres um pouco por todo o lado, viajando a pé por caminhos impossíveis, morrendo os que não correram contra o mar, insistindo os mais novos com crianças aos ombros, todos pelo sonho de uma vida melhor e apesar dos embaraços que alguns países lhes colocam na frente. Eles querem, quase todos chegar à Alemanha. A Alemanha, que praticamente gere os tratados da Europa e sopra para a Comissão Europeia que vigie os países, que os retenha na austeridade, que os faça ajoelhar perante as famosas regras de tratados cada vez mais obsoletos.
Então, para que sítio querem ir? «Para A Alemanha, Suécia, Irlanda, Suiça»
Mas há outros lugares mornos, afectuosos a ocidente, da França à Espanha e a Portugal.
E os mártires respondem: «Não queremos nada disso, Nunca iremos para esses lugares. Queremos uma vida melhor».

                        


    



                                            MAR SALGADO, ESPELHO DOS MORTOS

segunda-feira, 25 de abril de 2016

NADA NOS OBRIGA A ANDAR PARA A FRENTE


Nada nos obriga a andar para a frente. Sempre que passava por aqui, na baixa mar, sentia um fedor de fezes e de limos podres, nascidos das pedras. De forma um pouco maquinal, enviesava a marcha, passos para a direita, até pisar a relva, mas perdia uma decisiva faixa da água do rio, e em boa verdade ela fazia-me falta para ganhar o espaço inteiro  do meu olhar  e das minhas expectativas de percepção: é que nessa zona passavam os barcos de papel que gostava de construir enquanto estava sentado na esplanada, muito para trás, lendo a minha própria escrita em conjugados esforços. As pessoas estranhavam um pouco quer a fase da dobragem dos barcos em papel e alarmavam-se um pouco quando os pousava na água ou quando davam por mim, cem ou duzentos mais lá para a direita, à espera; ou agachado a fitar as pequenas "caravelas" desfilando em direcção (presumiam) à Torre de Belém.
Eu voltava ao meu caminho, já sem papéis nem restos deles nas algibeiras, Andava de novo em frente, ninguém me avisava do contrário, e sem querer desviava um pouco a direcção dos passos para a esquerda, pisando as pedras do longo cais. A maré continuava baixa  como é fácil depreender, mas a aragem das fezes desaparecera, havia sido substituída por um cheiro a certo tipo de algas, algo que lembrava o verdes escuro delas e a salinidade da zona, um odor másculo, salgado, vindo porventura do meio do rio, naquele estuário enorme, onde vogavam com inesperada regularidade grandes navios de carga, pretos em geral,com uma zona baixa que mais parecia ferrugem do que tinta. O fumo deles não agredia o nariz de quem espetava a cara para a sua escala mamutiana. Mas de lá, quando a sua popa se desfocava para a esquerda, para Leste,vinha de lá um vago perfume de alcatrão, aquele mesmo que me fazia parar no asfalto, na parte baixa da minha terra, a sul. Nunca percebi porquê, mas esse perfume casado com a salinidade fazia-me com que o aspirasse profundamene. Quando, enfim, voltava para trás, imaginava outro projecto. E tinha que procurar grandes fragmentos de cortiça, como fazia por vezes, com menos atrevimento, nas arrecadações das fábricas de transformação da cortiça, no sul.
Esta lembrança envolve a ilha do Loge e a ilha da rio Arade, Senhora do Rosário. Porque escrevi ontem sobre elas, o texto descia e o corpo da imagem subia. Atrás acontecera a mesma coisa. Era como andar em frente e a realidade fugir de mim, para trás. Amanhã a história terá sido afundada, já sem palavras nem fotografias, enquanto os meus pés terão de parar no limite dos ferros e da  costa em pedra, obrigados e reverterem a marcha.

domingo, 24 de abril de 2016

O LENTO ANOITECER DO NOSSO DESCONFORTO

A ilha solitária faz-me lembrar dias de infância em que me atrevia a nadar, no rio Arade, da margem até à pequena falésia de uma ilha existente perto da foz do rio Odelouca. Metia-me à água com uma prancha de cortiça que fazia vogar na minha frente até chegar à concavidade arenosa da ilha do Rosário. Isto podia começar  relativamente cedo, nos dias em que a família estava fora. Era uma aventura de rapazola e a resposta ao apelo que descrevi a propósito da ilha do Loge, em Angola. Saltar para um banco rochoso, junto da terra-areia e começar a escalada até domina o planalto da ilha, olhando repetidamente para as ruinas de uma ermida (diziam-me os velhos) e para os buracos da especulação arqueológica. É certo que, naquele tempo, alguma gente ligada à cortiça, operários e trabalhadores do cozimento das  pranchas vindas dos sobreiros.

O Mediterrâneo é um mar interior, ultimamente atravessado por milhares de jangadas de borracha e outras embarcações rudimentares. Multidões inqualificáveis, incontáveis, enchem a dobrar tais meios de transporte. As famílias sírias, entre outras, acumulam-se com os outros e a crianças mal respiram. Tudo isto por causa das guerras desencadeadas na Síria e em volta do Iraque, com maior e mais selvagem incidência pela linha terrorista auto proclamada de Estado Islâmico. Gente sem escrúpulos, no meio dessa lama e do sangue derramado, alicia e compra os que fogem, oferecendo-lhes, por elevados pagamentos, o horror das viagens sem lugar marcado e sem o mínimo serviço para tão convulsivas situações, os que tombam para o mar, os meninos que esbracejam antes dos olhos se imobilizarem, doenças súbitas, distúrbios gástricos e toda a ordem, chegadas que não acontecem, esperas dementes, os minutos do salvamento, as horas de resgate, os campos italianos e gregos, tudo improvisado e sem a avaliação de quem se refugia, de quem pede asilo mas ou menos político, de quem se diz migrante económico .
Em todo este desespero começaram, sem lei nem ordem, as fugas para o interior do continente. Marchas indizíveis, ao sol, à chuva, entre mortos e feridos, entre doentes   e velhos atados a improvisadas padiolas. 
Muitas fronteiras fecham-se, com muros ou paredes de arame farpado, obrigando a circuitos alternativos que nunca aparecem na paisagem, embora a cegueira colectiva arraste uns e outros por infinitos carreiros.

UM LAGO HOJE

Estiveste no Loge e ainda não tinha chegado o 25 de Abril. Amanhã é outro 25 de Abril já em 2016. Longe, a fortaleza não tem soldados nem tipos como tu, olhando melancolicamente para a ilha onde terias (assim pensavas) ancorar um dia. Mesmo que voltasses a nado. 
Sousa Carneiro

A LENTA AGONIA DAS MEMÓRIAS


Longe, a guerra parecia substituída pela paz ou certos sonhos de silêncio. Repenso o rumor das águas do rio Loge, a ilha breve inerte no seu grande estuário. Escrevia: tenho de arranjar uma piroga para remar até além. Apesar desse desejo misturado ao sonho da travessia nunca encontrei a piroga, nem as coisas que poderiam fazer esse papel ou qualquer bóia constituída por pneus, alternativas assim. Eu estava sentado na fortaleza e olhava o recorte da ilha, oblonga, habitada por aves menores mas vibrantes, a esvoaçar. Mas não havia alternativa para essa visita solitária nem garantias de um retorno em forma de memória boa.