terça-feira, 14 de março de 2017

RETROCESSO CIVILIZACIONAL

As escolhas destes dias cinzentos sujam, cada vez mais, as grandes memórias anteriores a Deus; as coisas que a gene diz:

1. Eles abrem as televisões: o ecrã enche-se de lixo e ruído. O cartel da publicidade, entre todos os canais, aparece em todo o lado, sufocante, insistindo nos carros, nas comidas e nos zelos em tudo o que parece estúpido e é tratado como Alice no País das Maravilhas. Ou a rapariga do Trivago que nunca mais despiu a camisinha azul-qualquer-coisa. À hora da publicidade as urgências hospitalares enchem-se ao máximo: são os de meia idade que aguentaram três horas de televisão, viram duas de publicidade e já não esperavam mais tortura. Já contei meias horas de publicidade. Em geral, o som está sempre puxado até à ponta das nossas pobres orelhas.
As novelas portuguesas (porque as compradas ao Brasil perderam toda a dignidade) mostram a grande intuição interpretativa dos nossos actores. Era melhor gastar aquele dinheiro em cinema. Seja como for, as novelas têm qualidades de imagem, rigor formal, interpretação. Perdem quase todas as virtudes por se encharcarem de musiquinhas e canções, cançonetas, palermices intercalares. Os Realizadores ainda não perceberam a importância do silêncio e das falas sem musica em painel. Esticam Guionistas e eles esticam o argumento, salpicando tudo de pretensas lições de moral. O mal impera, truques, maldades, amores em estado indistinto. Nunca aprenderam a fingir sexo na cama sem começar por despir primeiro as camisolas e nunca tocam nas calças e nunca mais perceberam a caricatura daquilo. Nem mesmo alcançaram os modos de sugerir os corpos nus sem fazer mal a ninguém. Há disso sem um pico de amoralidade; mas esta simetria (em baixo) não se parece com nada. Ou melhor talvez se pareça com uma despedida antes do Haraquiri.


Há disfarces que são mais pornográficos. Exemplo: tiram a camisa (eles) e ficam em tronco nu. Elas tiram a camisa e ficam em soutien. Começam assim e nunca mais se vê cair a ganga ou ele puxar o soutien com um mínimo de ternura. Fungam. Fazem caretas nos primeiros planos. E, noutros casos, metem-se num corredor meio escuro, à americana: ela encosta-se à parede e ele a ela, O homem simula que levanta sem esforço a rapariga para que ela levante a coxa visível e o suficiente para que isso nos faça intuir o espaço aberto entre essa anatomia e a outra, de pé. 
De política, o horror está no tamanho do último minuto, quando o Mendes é avisado que já só tem dez segundos. 

2. Em Futebol há, nos canais todos, umas dezenas de "marretas" que se sabem de futebol não demonstram: berram todos ao mesmo tempo e não abordam uma única questão de fundo, de ética no desporto, de talento e técnica, de espírito de entrosamento e de corte aos embates, rasteiras, pontapés nas canelas, tudo o que se paga, no mínimo, por uns milhões de euros. O Futebol é um dos maiores embustes contra a civilização, amoral, patético, caríssimo, sem tecnologia de julgamento, imitando no cume, entre marcas no peito e nas costas, essa governação esquisita que temos tido à medida que o 25 de Abril se desvanece.

Seguiremos, um dia, com outros temas  para educar o olhar e aperfeiçoar a percepção do país que fomos fazendo.
                                                                               
3. A última vez que fui ao cinema, convenci-me  de que "Interestelar" era obra de mérito. Mas faltava-lhe aquele credo do esplendoroso cinema de Tarkovsky ( "Solaris" e os outros) visto ainda em pequenos estúdios mas tecnicamente aceitáveis. Resolvi respeitar o "Interestelar" e meti.me ao acaso numa das caixas de fósforos do Amoreiras, tendo sido imediatamente cercado de palavrões de um jovem público, namorados beijando-se sem fogo, pacotes de pipocas sobre os joelhos. E um som aterrador saindo das colunas, em sincronia com os filmes publicitários. Quando o filme começou (acção americana) um carro era perseguido pela polícia. O ruído atroava a ossada dos ouvidos. Protegi os tímpanos com um dispositivo comprado na farmácia e tentei seguir aquela fabulosa abertura. Por estranho que pareça o roncar dos pneus no asfalto parecia acompanhado de pedrinhas a estalar, expelidas para fora da estrada sob o efeito da velocidade  a par do uivar da borracha. A uma paragem do trânsito todo, o estalar das pedras continuava a ouvir-se, coisa que procurei perceber, entre as vozes das personagens enquanto esperavam a abertura dos sinais. Não era nada que saltasse do ecrã. Eram as dentaduras de cerca de cem espectadores, pacote ao peito, retirando nervosamente pipocas do interior e trincando-as como ratos gigantes. Assim foi durante mesmo todo o filme, no qual  foram destruídos cerca de vinte viaturas e se assistiu a um assassinato na noite de Los Angeles.

4. No último concerto que ouvi, ao ar livre, no anfiteatro da Gulbenkian, ainda não havia pipocas e a instituição não toleraria esse bizarro vício perante uma orquestra estrangeira, de grande gabarito, a tocar Beethoven. Quando o espectáculo terminou e as pessoas se retiraram lentamente, fiquei um pouco para trás a olhar alguns cuidados do programa. Quando decidi levantar a cabeça e iniciar a marcha, algo me assaltou o olhar revirado: todas as bancadas, e parte do próprio chão fronteiro a elas, estavam completamente coalhadas de cascas de rebuçados e chocolates, livretes do programa, jornais (inclusive), lenços de papel, amarrotados. Na Gulbenkian? Da classe média alta?


5. Nas ruas, às seis horas, o trânsito quase pára, e mais de metade dos carros meio estacionados apitam como se o mundo estivesse para acabar. Uma senhora fora atropelada junto da rua das Pretas e ouvia-se já a gritaria da sirene do INEM. Nessa mesma noite, li no outro dia, no "Correio da Manhã", que houve entretanto dez crimes, mais uma morte de mulher, rachada a machado pelo marido, numa casa da rua das Colónias. O mesmo jornal documentava o desaparecimento de uma menina de 13 anos, certamente por influência das "redes sociais". Os pais haviam encontrado fotografias de um rapaz e bilhetes amarrotados. Um deles indicava certo café de Braga, 10 horas, dia 15. Uma tal Maria Joana, que trabalhava no interior, perto de Viseu, fora presa no casebre que habitava com o amante e onde tivera uma filha, na altura ainda bébé. No outro dia, os jornais falavam do caso com grande alarde, pois constara que a menina bebé desaparecera, havendo sulcos de sangue, e muito em breve apareceu numa grande caixa de lixo, aos bocados, o corpo da pobre criança.

6. Fora primeiro ministro e acabara, derrotado, nas ruas de uma remota cidade europeia. Tinha amigos em  Portugal e com eles trocou favores: anos depois os amigos foram acusados de lavagem de dinheiro e de transferências de grandes fortunas para empresas que, por sua vez, estavam sendo manipuladas e a caducar perante um assalto sistemático de Grandes Grupos da União. A maior Empresa de Transmissões, vai sendo abocanhada por outras, estrangeiras. Neste vórtice de milhões veio a descobrir-se um rol de 27 pessoas ligadas ao empresariado e à Finança, entre políticos e gestores de bancos falidos. Dez mil milhões de euros, num milhar de operações, haviam sido encaminhados de Lisboa para a Suiça, além de outros lugares muito dados a burlas deste tipo, para diversos offshores.

7. A União Europeia resultou de propostas e importantes reflexões de personalidades de grande relevo. Infelizmente, os executores desse Projecto começaram a borbulhar no espaço destas nações e basearam as suas propostas num errático montão de tratados contraditórios entre si relevados perante as anteriores perspectivas de um grande espaço, inter-relacionado com o mundo, aberto para si próprio, solidário no melhor entendimento da modernidade.


                                                            euromania

Mas a grandeza das construções sediadas em Bruxelas imitam um futuro modelar enquanto os seus viventes parlamentares, comissários, presidentes e muitos outros, ficam boiando em dinheiro e retórica  sem  abrir  nem  reciclar  os tratados, impondo aos países da União, com pouco respeito pelos seus orgãos de soberania, regras e regras de aperto, de contracção, em nome de um amanhã afinal anémico, contraditório, prisioneiro das caturrices de países enfadonhos, ricos, a lembrar o belicismo dos anos 30 a 40 do século XX. Assim, a Inglaterra retira-se da organização, num brexit que mais parece uma batalha de funconários, parlamentos a abarrotar, dois anos de trabalhos e talvez uma década para tudo isso acabar, enquanto, pelo caminho, outras vontades de libertação do cerco começarão a tentar lançar clareza à Comissão Europeia, aos snobes países do Norte, ao Parlamento, à centralizadora Alemanha, a abarrotar de euros, refugiados e regras após regras.

8.  Portugal, bem vista  a figuração da geografia, é centro do mundo, é  "rosto da Europa". Sofre de muitos males que invadem os territórios povoados, ou muito povoados, enche-se de lixos e, embora também polua o oceano, esquece-se das antigas descobertas marítimas, perdeu barcos, não quer ou nem pode dedicar-se a uma relação profunda com o estudo científico das profundidades marítimas, nem sequer explorar o eventual petróleo existente na área da sua plataforma oceânica. Nisso talvez tenha feito bem, como não construindo centrais nucleares. Acompanha os outros em produzir lixos assassinos, como estas imagens indiciam. No mar e em terra.

um dia  saberemos desbravar estas notas e avançar para uma civilização limpa


1 comentário:

  1. Identifico-me mais uma vez com o que aqui demonstra com a lucidez que o caracteriza, espero que Portugal consiga levar a sua carta a Garcia, quero dizer, manter o rosto da Europa sereno e altivo, não se deixar intimidar pelos ventos da modernidade (e da moda), apenas retirar o que convém e mostrar que somos europeus de direito, aliás mostrar que temos de que nos orgulhar de ser um traço de união entre continentes e que a Uniao Europeia PRECISA de nós.
    Infelizmente, como muito bem diz acima, os nossos «media», a começar e acabar no Correio da manhã jornal e canal televisivo, com outros de permeio, só vivem de explorar as misérias chafurdando em tudo quanto é desgraças e atrocidades, esquecendo as notícias que respeitam a cultura e o mérito, referindo ocasionalmente uma ou outra referente à arte, música, desporto no seu melhor passando como cão por vinha vindimada.
    Futebol, queimadas e terror, assim vai ser o nosso Verão.
    Fico à espera do que diz, ou vai dizer o bom Papa Francisco em Fátima...

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